fonte: O Globo
A família de Larissa Eduarda Santos Borges não encontra explicações para a morte prematura dela, aos 18 anos, três dias após dar à luz Lorenzo, no Hospital Municipal Rocha Faria, em Campo Grande. Com o netinho de 1 mês em casa e as lembranças da filha única, grávida e feliz, imortalizadas em mais de 300 fotos, a mãe Priscila Carvalho Borges vive hoje entre o luto e a missão de cuidar do bebê, que recebeu da jovem num leito do Rocha Faria, onde ela deu entrada no dia 4 de março na 40ª semana de gravidez. Lá, ela fez uma cesariana porque o feto estava em sofrimento e chegou a ir para a enfermaria, onde amamentou o filho. Mas, com fortes dores e hemorragia, foi operada outras duas vezes e teve o útero retirado. Resistiu até o dia 7. O óbito, agora, é investigado pela Secretaria municipal de Saúde (SMS). O hospital e o Instituto Médico-Legal (IML) apontam causas diferentes para a morte.
— Levaram a minha filhinha amada e cheia de saúde. Sempre com um sorriso lindo. Estou sem chão — diz Priscila, sem conter as lágrimas. A maternidade referência dela era a Alexander Fleming (em Marechal Hermes). Só que minha filha começou a sentir as dores do parto e pediu para ir para o Rocha Faria, porque era mais perto. E disse ainda: “quero ir para o Rocha Faria, porque ali não tem mais mortes”. Estou triste dentro de mim. Vai ser uma dor eterna na minha vida. Mas tenho que me manter firme e forte pelo Lorenzo. Ele vai viver num mundo de felicidade.
O sofrimento da família de Larissa, que vive no bairro 7 de Abril, em Paciência, espelha um quadro que preocupa profissionais de saúde. Na contramão dos avanços da medicina, a taxa de mortalidade materna (da gestação até o 42º dia após o nascimento do bebê) vem aumentando no município do Rio: passou de 71,8 mortes por cem mil nascidos vivos, em 2015, para 82,8, no ano passado. Uma taxa bem superior à da capital paulista: de 51,6, em 2015, e 47,8, em 2017. E distante do que prega a Organização Mundial de Saúde (máximo de 70 por cem mil) e da meta brasileira (20 por cem mil).
Especialistas veem várias razões para a taxa de mortalidade materna estar numa curva ascendente no Rio. Os problemas, dizem, começam no atendimento de pré-natal na rede básica da prefeitura, sem equipes completas, equipamentos e remédios. Profissionais de saúde citam ainda a falta de médicos e de infraestrutura em policlínicas e maternidades, bem como a demora para conseguir marcar consultas com especialistas e exames, além da superlotação dessas unidades. Embora reconheça que a taxa de óbitos maternos é alta na cidade, a Secretaria municipal de Saúde sustenta que o fato decorre da vulnerabilidade social.
— Está relacionado a nível de renda, educação, moradia, qualidade de vida. A vulnerabilidade social cresceu na cidade — alega Carla Brasil, superintendente de Maternidade da SMS. — Temos um Comitê Municipal de Prevenção e Controle da Mortalidade Materna que analisa as mortes de mulheres em idade fértil, de 10 a 49 anos.
No ano passado, houve 70 óbitos maternos entre moradoras do Rio. A grande maioria morreu em unidades públicas da prefeitura (74,3%), e as complicações obstétricas diretas (especialmente infecção, doença hipertensiva, hemorragia e aborto) foram responsáveis por mais da metade desses óbitos.
“ESTÁ HAVENDO UMA CARNIFICINA NO RIO”
Para o ginecologista, obstetra e professor da UFRJ Raphael Câmara Medeiros Parente, no entanto, o crescimento desses óbitos tem como principal causa a redução drástica das consultas de pré-natal por obstetras na rede básica municipal. Requerimento de informações à prefeitura, feito por ele, mostra que só 4,7% dos atendimentos foram feitos por obstetras no ano passado, contra 15,1% em 2015. Médicos generalistas ou enfermeiros se encarregaram das demais consultas.
— Está havendo uma carnificina no Rio. Na saúde da família, as mulheres são atendidas por alguém de branco, que nem sempre sabem que é — afirma o professor.
Tal prática está no centro de uma polêmica. De um lado, a SMS diz que segue protocolos com recomendações do Ministério da Saúde e da OMS, e a presidente regional da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), Sabrina Seibert, garante que o pré-natal feito por enfermeiras melhora a qualidade da atenção básica de saúde. Por outro lado, um obstetra que pediu transferência do Hospital Municipal Pedro II, em Santa Cruz, alegando falta de condições de trabalho, revela que recebia na unidade pacientes que tinham realizado um pré-natal precário:
— Atendi, por exemplo, uma mulher com hipertensão gestacional, na 41ª semana. Sua gravidez deveria ter sido interrompida antes, pelo risco de eclâmpsia. Mas os problemas estão na maternidade também. O estoque de seringas é baixo, e faltam instrumentos e medicamentos para conter hemorragia. Sem falar que outros médicos, como eu, pediram demissão este ano. É uma situação de desespero não poder fazer nada para salvar uma vida.
Para o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), Nelson Nahon, a crise da saúde do Rio explica a alta da mortalidade materna:
— Equipes de saúde da família estão fragilizadas, com quadro de médicos reduzido. Nas policlínicas, que deveriam fazer o atendimento secundário, faltam especialistas. Nas maternidades públicas, há carência de médicos, materiais e aparelhos. Aumentar o número de partos normais é bom. Não deve haver é uma obstinação por isso. E enfermeiras obstétricas estão fazendo muitos desses partos. Mas é preciso haver um médico próximo para qualquer intercorrência.
Diante de tantas dificuldades, a médica Danielle Lopez Pera, de 29 anos — que cobrou mais atenção do prefeito Marcello Crivella quando ele visitou o Centro Municipal de Saúde Nagib Jorge Farah, no Jardim América, em dezembro — optou por deixar a rede pública. Recém formada e generalista, como grande parte dos médicos que estão na atenção básica, afirma que via pessoas sofrendo sem conseguir fazer o seu trabalho:
— Não me formei para isso. Estava acabando com a minha saúde. Constatei um quadro de pré-eclâmpsia numa gestante. Só um mês depois consegui que a consulta com especialista fosse marcada. E, mesmo assim, o atendimento foi agendado para o mês seguinte.
DECLARAÇÕES DE ÓBITO DIFERENTES
Quanto à Larissa, o pré-natal foi feito por uma médica do Centro de Saúde Emydio Cabral, em Paciência. Grávida, a jovem concluiu o ensino médio. Era da mesma turma do namorado e pai de Lorenzo, João Pedro Soares de Mesquita, de 19 anos, que acompanhava a jovem nas consultas, junto com a mãe e o pai dela, Eduardo Santos.
— Minha filha passou bem a gravidez toda. Ela entrou viva e saiu morta do hospital. Quando acabou a segunda cirurgia, foi para a sala de pré parto, porque não havia vaga no CTI. Depois da terceira operação, foi para o CTI, que não tinha ar condicionado. Na hora da visita, encontrei a Larissa toda molhada de suor. Não quero acusar ninguém, mas saber o que aconteceu com a minha filha. Queriam que retirássemos o corpo dela correndo do hospital, e tivemos que ir à delegacia para conseguir que fosse feita a necrópsia — desabafa Priscila.
Conforme a declaração de óbito do IML, Larissa morreu de sepse (infecção generalizada). Já a declaração do hospital cita complicações obstétricas: choque hipovolêmico (hemorrágico), histerectomia subtotal (remoção do útero) e hipotonia uterina (contração inadequada do útero). Os dois documentos serão somados a outros que estão sendo recolhidos pelo advogado Thiago Martins Dias, para respaldar ação que ingressará na Justiça. Ele pretende pedir ao Ministério Público que acompanhe o processo.
Diferentemente de Larissa, Jeniffer Claudino, com 35 semanas de gravidez, fez todas as consultas de pré-natal no Centro de Saúde Carmela Dutra, em Rocha Miranda, com enfermeiras. A demora para realizar exames foi o que mais a incomodou:
— Tive de vir para a Herculano Pinheiro (maternidade municipal em Madureira) para fazer exames de sangue e urina. Bem ou mal, levei quatro horas, mas fiz os exames e recebi os resultados. No posto, levaria um mês.
Os problemas enfrentados pela sobrinha, faz Elizabeth Rita Silva, grávida de oito semanas, agradecer a Deus por ser dependente do marido no plano de saúde de sua empresa:
— Estou fazendo o pré-natal com o médico que escolhi, que vai fazer meu parto.
TAXA DE MORTALIDADE CHEGA A 161 NA ZONA OESTE
É num trecho da Zona Oeste, nos arredores de Santa Cruz e Paciência, que se concentra a maior taxa de mortalidade materna do Rio: 161,3 por cem mil nascidos vivos. Prima de Larissa, Karolyne Silva do Nascimento, que mora na comunidade do Rola, em Santa Cruz, escapou da estatística, em julho do ano passado. Na época tinha 17 anos. Depois de 20 horas aguardando o parto normal no Pedro II acabou tendo que fazer cesariana, seguida de infeção, mais duas cirurgias e 21 dias de internação. Karolyne chegou a ter alta dois dias depois do parto. Foram dois dias em casa, com a barriga muito inchada e dores, até ser levada de volta ao Pedro II. O trauma ficou.
— Nunca mais quero ter filho — diz ela, aos 18 anos.
Karolyne se trata na Clínica da Família Deolindo Couto, em Santa Cruz, a mesma onde Thais de Araujo Dias faz o pré-natal de seu segundo filho. Ela elogia os profissionais, mas critica a falta de estrutura da unidade:
— O bebedouro ficou meses quebrado. Os funcionários é que levavam água e copos. O aparelho de ultrassonografia está parado desde o fim de setembro do ano passado. No início de setembro, cheguei a fazer uma ultra na clínica. Mas a qualidade era tão ruim que a médica sugeriu que eu repetisse numa clínica particular. Ela suspeitava de um hematoma na bolsa, o que se confirmou no novo exame. Prescreveu um remédio que não tinha na clínica (segundo a SMS, ele não faz parte da grade de itens da rede de atenção básica). Sou técnica de enfermagem e sei que o hematoma pode causar descolamento de placente e matar meu bebê. Aí, resolvi comprar o remédio.
Perto dali, no Pedro II, cadeiras da sala de espera das pacientes de pré-natal com o estofamento rasgado são um sinal de descuido. Um desleixo que se estende para a área de internação do hospital. Bruno da Silva Santos, que foi pai pela segunda vez semana passada, mostra fotos dos bercinhos sem colchão:
— Tive que trazer panos para forrar o berço da minha filha.
Na enfermaria onde a mulher ficou logo após o parto, acrescenta ele, os acompanhantes têm que dormir nas escadas das macas:
— Só quando as mães já estão para ter alta e vão para outra enfermaria é que há poltronas para os acompanhantes. Mesmo assim, rasgadas.
Por e-mail, a SMS diz que o Pedro II vai apurar a conduta adotada no atendimento à paciente Karolyne. Afirma ainda que “desgastes no mobiliário podem acontecer em função da alta demanda, e o reparo é providenciado pela Organização Social, gestora da unidade”. Garante também que o órgão “tem feito esforço para reduzir a mortalidade materna no município” e que, no primeiro trimestre deste ano, o número de óbitos foi de 11. No mesmo período de 2017, chegou a 22.